A Lei Brasileira de Inclusão (antigo Estatuto da Pessoa com Deficiência) está em vigor há três anos, mas ainda há muito a avançar no que diz respeito ao acolhimento de crianças e adolescentes com deficiência na rede regular de ensino. De acordo com a promotora de Justiça Eleonora Marise Silva Rodrigues, que atua na Defesa da Educação no Ministério Público de Pernambuco (MPPE), no Estado foram registradas apenas 10 queixas contra escolas particulares no período de 2016 a 2017. Isso porque a realidade se esconde no temor dos pais por eventuais retaliações contra os filhos. "A postura de prestar uma queixa contra uma instituição de ensino ainda é tímida e causa receio, afirma a promotora.
Dentre as diretrizes estabelecidas pela lei de inclusão, o artigo 25 determina que nenhuma escola pública ou privada pode negar matricula aos estudantes com deficiência. Mas a realidade continua sendo bem diferente, e o relato da pedagoga Claudia Ferreira, de 47 anos, é muito semelhante ao de tantas outras mães que passam por essa situação. “Meu filho foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autismo (ETA) com um ano e cinco meses. Depois do período que iniciamos as terapias veio a hora de colocá-lo na escola. Algumas de bairro não tinham estrutura sequer para alunos típicos, muito menos para com deficiência. Até que fui para uma escola grande, mas não revelei de cara que ele tinha autismo”, disse. “Depois de toda a conversa eu expliquei que ele era autista e parecia tudo certo. No dia seguinte, a coordenadora me chamou e informou que não havia estrutura para recebê-lo, mas que eles poderiam até aceitá-lo, só que meu filho ficaria no cantinho da sala sem fazer nada, porque eles não têm como fazer um planejamento pedagógico para ele”, afirmou a pedagoga. Seu filho, Arthur Felipe, de 10 anos, hoje estuda na Escola Municipal Engenho do Meio, referência em receber alunos com deficiência.
Outro ponto não cumprido em algumas escolas particulares é a cobrança ilegal da taxa extra para a contratação de mediadores ou qualquer outro serviço adicional de acompanhamento para o aluno com deficiência. O descumprimento da legislação, inclusive, configura crime passível de punição, com reclusão de um a quatro anos. A reportagem da Folha de Pernambuco entrou em contato com cinco estabelecimentos situados na Zona Norte do Recife e apenas uma, localizada no bairro do Espinheiro, respondeu por e-mail afirmando que trabalhavam com inclusão, "mas é necessário avaliar a criança e conversar com os pais pessoalmente para ver se é possível fazer um trabalho onde a criança irá ter um crescimento com as atividades. O valor pode sofrer um aumento de 10%, se tivermos que contratar uma pessoa somente para auxiliá-lo”, comunicou. A promotora Eleonora Marise enfatiza que, “detectada a necessidade de o estudante de ter um acompanhamento junto a um mediador, caberá à escola contratar o profissional”.
O temor de retaliação é o principal motivo para que os pais não escolham as ferramentas judiciais para garantir a matricula do seu filho na escola em que se deseja estudar. “Estamos falando de uma criança que tem dificuldade na comunicação e não vai saber contar tudo que está ocorrendo, se realmente ela está sendo inclusa após os pais terem que ir à Justiça para que ele esteja lá. Muitas mães têm medo por conta disso”, afirmou a fonoaudióloga Alessandra Sales, que é diretora da Clínica Somar. Com duas unidades terapêuticas, a Somar tenta firmar parcerias com as escolas das crianças que fazem terapia na clínica, por meio de palestras gratuitas e orientações sobre como facilitar o trabalho das instituições ao receber esses alunos com deficiência. "Somos até bem recebidos, mas, quando damos as costas, tudo que foi orientado não é passado adiante", desabafou a fonoaudióloga.
Sindicato
O coordenador do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de Pernambuco (Sinepe-Pe), professor Francisco Ferreira, esclareceu que a entidade tem atuado no intuito de conscientizar as instituições de ensino particular para que “cumpram sua função social”. “O sindicato não é órgão fiscalizador, isso compete às secretarias de Educação. O que estamos fazendo é chamar os diretores de escolas particulares para tratar da inclusão. No nosso site disponibilizamos a legislação e diretrizes das matriculas que tratam da inclusão de alunos com deficiência”, declarou. O coordenador do Sinepe acredita que o descumprimento da lei de inclusão ainda se dá por falta de crença das próprias instituições em promover uma educação voltada às crianças e adolescentes com deficiência.
“Várias escolas não acreditam na inclusão e dizem que não têm estrutura para receber esses alunos, que não têm pessoas preparadas. Outras escolas alegam falta de informação para cumprir a legislação. Para combater essas práticas, estamos fazendo constantemente palestras e encontros sobre o assunto”, disse Ferreira. No site do Sintepe, inclusive, há um questionário voltado para as escolas particulares, com a finalidade de obter informações para elaborar um perfil da efetivação da inclusão na rede privada de ensino.
Escolas públicas
Na rede pública de ensino, a obrigatoriedade da matrícula para crianças com deficiência tem sido cumprida. O grande problema apontado pelos pais é a estrutura capacitada para acolher esses alunos. “Eu queria que meu filho estivesse no ambiente escolar regular. Você ter que lutar por isso, que é um direito dele, é muito complicado”. Esse é o depoimento da servidora pública, Gabriella Carvalhau Barreto, de 35 anos, mãe do pequeno Gabriel, de apenas 11 anos, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autismo (ETA). Ele, que deveria ter retornado às aulas no início do ano letivo, ainda não foi matriculado porque a escola municipal Karla Patrícia, localizada no Bairro de Boa Viagem, não conseguiu contratar um mediador para acompanha-lo nas aulas. “Quero Gabriel na escola, mas ele precisa estar com uma pessoa junto a ele para direcioná-lo e essa pessoa precisa ter formação. Na escola, eles disseram que eu que deveria correr atrás dos estagiários. Encontrei três pessoas, mas elas desistiram no meio do processo”, declarou Gabriella.
Outras mães, que não conseguiram matricular seus filhos nas escolas particulares, migraram para a rede pública. Elogiaram a estrutura física dos espaços, mas se queixaram do fato de que estagiários têm sido designados para acompanhar as crianças com deficiência em sala de aula. "Muitos não têm preparo para lidar com crianças especiais. Meu filho tem autismo e é muito imperativo, mas aqui na Escola Engenho do Meio ele tem uma interação muito boa e uma equipe muito dedicada. Mas, falta um pouco mais de investimento do poder público para capacitar esses profissionais e remunerar melhor. Tem crianças que exigem mais do que outras e eles precisam saber o que vai trabalhar para poder ajudar as crianças", ressaltou a fisioterapeuta Melina Papariello, de 35 anos, mãe do pequeno João Pedro, de 11 anos.
O diretor-executivo de Gestão Pedagógica da Secretaria de Educação do Recife, Rogério Moraes, reconheceu que, apesar dos esforços da secretaria, muitos problemas ainda precisam ser enfrentados. Nos últimos cinco anos, a rede municipal de ensino do Recife registrou um aumento de 27,5% no número de matrículas de estudantes com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, com um salto de 2.661 deles registrados em 2012 contra 3.392 matriculados em 2017.
“Nesse caso específico da escola Karla Patrícia, não vamos nos negar a atender e acolher esse aluno, é uma questão que tem uma complexidade, mas já estamos tentando resolver. No último concurso que realizamos, das 500 vagas para Agentes do Atendimento Educacional Especializado (AAEE) foram chamados 250 concursados e vamos chamar mais”, declarou Moraes. Ele ainda ressaltou que o número de estagiários não vai diminuir por conta destas novas contratações especializadas. Em relação à escola Karla Patricia, a Secretaria de Educação do Recife, explicou que há 16 estudantes portador de deficiência e são atendidos por quatro Agentes de Educação Especial e três estagiários. A Secretaria também informou que no prazo de até 15 dias mais dois estagiários estão sendo contratados.
A Secretaria de Educação também realizou oficinas de comunicação facilitada, voltada para 20 professores do ensino especial e para 20 alunos autistas. Hoje, há 406 estudantes autistas na rede, que têm aula nas salas regulares junto com os demais alunos. No contraturno, eles desenvolvem trabalhos direcionados com 198 professores do AEE nas 120 salas de recursos multifuncionais que as escolas oferecem.
Após passarem por um processo de fiscalização pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) sobre a atuação no processo de inclusão, a Secretaria Estadual e Municipal de Educação se uniram em prol da campanha “Escola Inclusiva é Legal”, na qual a principal mensagem é fazer a população e as unidades de ensino entenderem que cobrar taxas extras para alunos deficientes é ilegal, assim como se negar a aceitar a matricula destas crianças. O direito de receber serviços educacionais especializados seja em escola particular ou pública também precisa ser oferecido. Vários cartazes estão sendo afixados em escolas, além da promoção de debates sobre o assunto.
“É importante que os pais procurem a Gerência Regional de Educação (GERE) e as secretarias de educação e façam a denúncia. A partir disso, um grupo de professores vai até a escola averiguar a situação e orientar os responsáveis. Após esse processo a escola poderá ser atuada e responde”, ressaltou a gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania, Vera Lúcia Braga de Souza.
Fonte: Folha de Pernambuco